Imagine perder a capacidade de ver o rosto de seus entes queridos ou as cores de um pôr do sol, não por uma falha no nervo óptico ou na retina, mas porque a "janela" do seu olho, a córnea, tornou-se opaca. Para um número crescente de pacientes que enfrentam essa realidade devido a queimaduras químicas, doenças autoimunes como a síndrome de Stevens-Johnson ou múltiplos transplantes de córnea mal sucedidos, a OOKP está oferecendo uma segunda chance de enxergar o mundo.
A lógica por trás deste procedimento notável, embora complexa, é elegantemente simples: o corpo é menos propenso a rejeitar seus próprios tecidos. Ao utilizar um dente e o osso alveolar circundante do próprio paciente, os médicos criam uma base viva e biologicamente compatível para uma prótese óptica, contornando a resposta imune que muitas vezes leva ao fracasso de implantes puramente artificiais.
A Jornada Cirúrgica: Da Boca ao Olho
O procedimento OOKP é uma maratona cirúrgica realizada em duas etapas principais, exigindo uma colaboração meticulosa entre cirurgiões oftalmológicos e maxilofaciais.Na primeira etapa, a equipe cirúrgica extrai cuidadosamente um dente do paciente, geralmente um canino ou pré-molar, juntamente com uma porção do osso adjacente. Este dente é então esculpido e modelado em uma lâmina fina, e um orifício de alta precisão é perfurado em seu centro. Neste orifício, uma lente acrílica cilíndrica – a nova córnea artificial – é cimentada. Esta estrutura composta, a lâmina osteo-odonto-acrílica, é então temporariamente implantada na bochecha do paciente. Este período de "incubação", que dura de dois a quatro meses, permite que a estrutura desenvolva seu próprio suprimento sanguíneo e se cubra com uma nova camada de tecido mucoso, essencial para sua sobrevivência e integração no olho.
Enquanto isso, o olho danificado é preparado. Toda a superfície da córnea opaca e o tecido cicatricial são removidos. A superfície do olho é então revestida com um enxerto de mucosa retirado do interior da bochecha do paciente, criando um novo ambiente vascularizado para receber o implante.
A segunda etapa ocorre meses depois. Os cirurgiões recuperam a lâmina dentária agora vascularizada da bochecha e a implantam firmemente na frente do olho preparado. A mucosa que a recobre é suturada, e uma pequena abertura é feita sobre a lente óptica, permitindo que a luz finalmente entre no olho e alcance a retina. O resultado é um olho com uma aparência única, mas funcional, onde uma pequena lente escura se assenta no centro de um tecido rosado.
Por Que um Dente?
A escolha de um dente como suporte para a prótese é o cerne do sucesso do procedimento. O complexo dente-osso é extremamente resiliente e, por ser do próprio paciente (um autotransplante), o risco de rejeição é drasticamente minimizado. O tecido vivo do dente se integra ao olho, garantindo uma estabilidade a longo prazo que as próteses puramente sintéticas lutam para alcançar.O procedimento foi pioneiramente desenvolvido na Itália na década de 1960 pelo professor Benedetto Strampelli e desde então foi refinado, tornando-se uma opção viável para os casos mais desesperadores de cegueira corneana. Embora não seja amplamente realizado, centros especializados em todo o mundo relatam taxas de sucesso impressionantes, com muitos pacientes recuperando uma visão funcional que lhes permite ler, reconhecer rostos e recuperar uma independência perdida há muito tempo.
Casos recentes, como o de um homem no Canadá que recuperou a visão após anos de cegueira, continuam a trazer a OOKP para o centro das atenções, demonstrando o poder da inovação médica em cruzar fronteiras disciplinares para resolver problemas aparentemente intratáveis. É um testemunho da engenhosidade humana, transformando uma parte do sorriso de uma pessoa na própria janela para sua alma.
Referências
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* Tan, A., & Tan, D. T. (2012). Osteo-odonto-keratoprosthesis. In Corneal surgery (pp. 483-491). Mosby Elsevier.
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