Resumo
Recentemente, reportagens sugerem que o governo dos Estados Unidos deverá anunciar que o acetaminofeno (Tylenol) pode estar associado a um risco aumentado de autismo quando usado por mulheres grávidas, recomendando seu uso limitado apenas em casos de febre alta. Este artigo resenha o que se sabe até agora: quais estudos sustentam essa hipótese, que tipos de vieses impedem conclusões firmes, qual a posição de entidades científicas e implicações práticas.
Introdução
O acetaminofeno (paracetamol em muitos países) é um analgésico e antipirético de uso amplo, inclusive durante a gravidez. Ele é frequentemente recomendado obstetricamente como o remédio de escolha para dor e febre, devido às limitações ou riscos de alternativas (como alguns anti-inflamatórios não esteroides) em certas fases gestacionais.
Recentemente, reportagens de veículos como Politico informam que o governo Trump está prestes a afirmar que o uso de acetaminofeno durante a gravidez pode contribuir com o risco de autismo — recomendando que gestantes limitem seu uso apenas para febre alta.
Evidência Científica Até Agora
Para avaliar se essa medida de recomendação tem base sólida, convém examinar o estado da literatura científica recente.
Estudos Observacionais
No JAMA 2024, um estudo populacional sueco incluiu cerca de 2,48 milhões de crianças nascidas entre 1995 e 2019, com acompanhamento até 2021. Neste estudo, modelos sem controle entre irmãos sugeriram leve aumento de risco de autismo, TDAH e deficiência intelectual associado ao uso de acetaminofeno na gestação.
Entretanto, quando se aplicou análise de irmãos completos (siblings), de modo a controlar fatores genéticos e ambientais familiares compartilhados, não houve evidência de que o uso gestacional de acetaminofeno estivesse associado a risco aumentado para autismo, TDAH ou deficiência intelectual.
Uma metaanálise recente que adotou a metodologia Navigation Guide examinou diversos estudos até fevereiro de 2025 para estimar a força de evidência sobre exposição pré-natal ao acetaminofeno e desordens do neurodesenvolvimento (autismo e TDAH). Ela encontrou associações em vários estudos, especialmente em exposições frequentes ou prolongadas, mas destacou que o risco de viés — por indicação (por que a pessoa tomou acetaminofeno — dor, febre, infecção), genética, uso concomitante de outros medicamentos — é alto.
Limitações, Contradições e Possíveis Vieses
Associação vs. causalidade: Muitos estudos encontram associação, mas isso não significa que acetaminofeno cause autismo. Pode haver fatores de confusão (por exemplo, condições médicas da mãe como febre/infeções, predisposição genética) que levam tanto ao uso de acetaminofeno quanto ao risco aumentado de autismo.
Uso de irmãos como controle: o estudo sueco mostra que ao se comparar irmãos expostos e não expostos, eliminam-se muitos vieses familiares e genéticos, e as associações desaparecem. Isso fortalece a hipótese de que o que muitos estudos veem como risco pode ser explicado por fatores compartilhados.
Dose, frequência e tempo de exposição: alguns estudos observam que exposições mais frequentes ou mais prolongadas têm associações mais fortes, mas há incerteza sobre quanto de exposição realmente representa “alto risco”. Além disso, muitos dados vêm de autorrelatos ou registros que não capturam uso sem receita ou o uso exato (quantidade, duração).
Posicionamento de Entidades de Saúde
A Society for Maternal-Fetal Medicine (SMFM) em 2025 reafirmou que, embora existam estudos apontando para uma possível associação entre uso de acetaminofeno na gravidez e risco de autismo/TDAH, as evidências não estabelecem causalidade. A SMFM mantém que é seguro usar acetaminofeno para dor e febre durante a gravidez, nas doses recomendadas, e alerta para os riscos de não tratamento da febre ou da dor.
O FDA (Food and Drug Administration) iniciou um processo de mudança de rótulo para refletir que há evidências que sugerem possível ligação entre uso gestacional de acetaminofeno e condições neurológicas como autismo e TDAH, além de emitir cartas aos médicos. Mas o mesmo FDA reconhece que não há prova conclusiva de que acetaminofeno causa essas condições, apenas evidências de associação.
O Que Sabe-se Até Agora
Pelos dados disponíveis:
1. Há indícios consistentes de associações fracas entre uso de acetaminofeno na gravidez e maior risco de autismo ou outros transtornos do neurodesenvolvimento, em estudos observacionais.
2. Estes indícios não se sustentam em estudos que controlam fortemente fatores genéticos e ambientais compartilhados (por exemplo, estudos com irmãos), onde os efeitos desaparecem.
3. Há lacunas importantes: sobre qual dose, qual trimestre, duração do uso fazem diferença; também se as condições subjacentes que levaram ao uso (febre, doenças infecciosas, inflamação) são parte da causa; dados de uso sem receita circulante (over-the-counter) muitas vezes são imprecisos ou ausentes.
4. As decisões clínicas e as orientações de saúde pública tendem a basear-se no princípio da precaução: se há possibilidade de risco, agir com cautela, mas sem alarmismo, levando em consideração risco benefício para mãe e feto.
A Proposta de Orientação Governamental
Com base nas reportagens recentes:
O governo dos EUA planeja anunciar publicamente que o uso de Tylenol (acetaminofeno) durante a gravidez pode estar associado a risco aumentado de autismo.
Recomendará que gestantes limitem o uso a situações de febre alta, evitando uso rotineiro ou prolongado, exceto quando clinicamente justificado.
Implicações Práticas
Para mulheres grávidas, profissionais de saúde e formuladores de políticas, algumas considerações:
Consultas médicas personalizadas: gestantes devem consultar seus obstetras ou profissionais de saúde antes de usar acetaminofeno, especialmente em casos de uso frequente ou dor persistente.
Uso mínimo eficaz: se for necessário, usar a menor dose eficaz por tempo mínimo, e evitar quando possível tratamento com outros métodos de alívio de dor/febre sem medicamento (compressas, repouso, hidratação), sempre que seguro.
Avaliação dos riscos da febre não tratada: febre alta durante gravidez pode representar riscos, inclusive para o feto — por isso, evitar tratar todos os casos de febre pode ser tão arriscado quanto usar acetaminofeno em demasia. Há trade-offs.
Comunicação clara: é essencial que o público entenda que até agora não há evidência definitiva de causas, mas sim de associações; evita-se alarme desnecessário que poderia levar mulheres a evitar medicações quando realmente necessárias.
Pesquisa futura: há necessidade de estudos longitudinais ainda mais rigorosos, com controle genético, dados precisos de uso OTC, avaliação de trimestres, doses, padrões de uso; talvez estudos experimentais ou de farmacocinética se possível.
Conclusão
Até o momento, a literatura científica mostra que há indícios de uma possível associação entre o uso de acetaminofeno durante a gravidez e risco aumentado de autismo ou TDAH, mas nenhuma evidência robusta que prove causalidade. Os estudos mais controlados (como os que comparam irmãos) não encontraram efeito persistente após controle de fatores familiares.
Portanto, a recomendação governamental de limitar o uso a casos de febre alta parece alinhar-se com uma abordagem de precaução. Porém, qualquer orientação desse tipo deve ser comunicada com ênfase na incerteza científica, para evitar pânico ou uso inadequado. Gestantes não devem abandonar o uso do medicamento quando necessário, mas sim usá-lo com cautela, sob supervisão médica.
Referências
Ahlqvist, V. H., Sjöqvist, H., Dalman, C., Karlsson, H., Stephansson, O., Gardner, R. M., Lee, B. K., et al. (2024). Acetaminophen use during pregnancy and children’s risk of autism, ADHD, and intellectual disability. JAMA, 331(14), 1205-1214. https://doi.org/10.1001/jama.2024.3172
Environmental Health Journal. (2025). Evaluation of the evidence on acetaminophen use and neurodevelopmental disorders: Systematic review using Navigation Guide methodology. Environmental Health.
Society for Maternal-Fetal Medicine (SMFM). (2025, Setembro). SMFM Statement on Acetaminophen Use During Pregnancy and Autism. Recuperado de https://www.smfm.org/news/smfm-statement-on-acetaminophen-use-during-pregnancy-and-autism
U.S. Food and Drug Administration. (2025, 22 de setembro). FDA responds to evidence of possible association between autism and acetaminophen use during pregnancy. Recuperado de https://www.fda.gov/news-events/press-announcements/fda-responds-evidence-possible-association-between-autism-and-acetaminophen-use-during-pregnancy
Yale School of Public Health. (2025, 22 de setembro). What the research says about autism and Tylenol use during pregnancy. Recuperado de Yale School of Public Health.
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