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O Beijo que Desafiou uma Pandemia: Como um Gesto de Coragem Ajudou a Combater o Estigma do HIV

Em 1991, o mundo ainda vivia sob a sombra avassaladora da AIDS. O medo, alimentado pela desinformação, criava um abismo social mais profundo e, por vezes, mais doloroso que a própria doença. Pacientes eram isolados, famílias eram desfeitas e o toque humano, antes sinônimo de conforto, tornou-se um vetor de pânico. Foi nesse cenário de pavor generalizado que um gesto singelo, porém imensamente poderoso, quebrou o silêncio e desafiou a ignorância: um beijo.

Durante um congresso médico em Cagliari, na Sardenha, o respeitado imunologista italiano Professor Fernando Aiuti caminhou em direção a Rosaria Iardino, uma jovem de 25 anos que vivia com HIV, contraído através de uma transfusão de sangue. Diante de uma plateia de colegas e jornalistas, ele a beijou nos lábios. O flash das câmeras eternizou um momento que transcendeu a medicina e se tornou um marco na história da saúde pública e dos direitos humanos.

Para compreender a magnitude desse ato, é preciso recordar o clima da época. O HIV era popularmente e erroneamente visto como a "peste gay", e a ignorância sobre suas formas de transmissão era endêmica. Havia um medo palpável de que o vírus pudesse ser contraído por meio de abraços, talheres, assentos de vasos sanitários e, claro, beijos. Essa desinformação não apenas estigmatizava os pacientes, mas também dificultava enormemente as campanhas de prevenção, que lutavam para focar nas vias de transmissão reais: relações sexuais desprotegidas, compartilhamento de agulhas e transmissão vertical (de mãe para filho).

O Professor Aiuti, então presidente da Associação Nacional de Luta contra a AIDS (ANLAIDS), sabia que a ciência precisava de um rosto e de um gesto para ser compreendida pela população. Ele não estava realizando um experimento; estava promovendo uma demonstração inequívoca de um fato científico já estabelecido. O beijo não era um risco, pois a concentração de vírus na saliva é insuficiente para a transmissão. No entanto, para o público leigo, bombardeado por manchetes sensacionalistas, aquele ato foi uma revelação.

A fotografia do beijo rodou o mundo e se tornou um ícone. Ela comunicou, de forma mais eficaz do que qualquer panfleto ou palestra, uma mensagem clara e tranquilizadora: "Vocês não precisam ter medo de conviver com pessoas com HIV. Podem abraçá-las, podem beijá-las, podem oferecer seu amor e seu apoio". Para Rosaria Iardino, que se tornaria uma proeminente ativista, o gesto foi uma validação de sua humanidade, uma recusa em ser definida apenas por seu status sorológico.

O impacto do gesto de Aiuti foi duplo. Primeiramente, ele acelerou a educação pública sobre o HIV. A imagem forçou a mídia e as autoridades a discutirem as verdadeiras formas de contágio, desmistificando o contato casual. Em segundo lugar, e talvez mais importante, ele combateu diretamente o estigma. O estigma é uma barreira perigosa na saúde pública; ele impede que as pessoas procurem testagem, adiram ao tratamento e falem abertamente sobre sua condição. Ao beijar Rosaria, o Professor Aiuti não estava apenas quebrando um tabu, estava restaurando a dignidade de milhões de pessoas e abrindo caminho para uma abordagem mais compassiva e eficaz no combate à epidemia.

Hoje, mais de três décadas depois, vivemos uma realidade diferente, com tratamentos antirretrovirais que tornam o HIV uma condição crônica e indetectável, impedindo a transmissão (I=I: Indetectável é Igual a Intransmissível). Contudo, o estigma, embora diminuído, ainda persiste. A história do beijo entre Fernando Aiuti e Rosaria Iardino serve como um lembrete atemporal de que a luta contra uma doença nunca é apenas biológica. É também uma batalha social, travada nos campos da educação, da empatia e da coragem. Foi um beijo que não transmitiu um vírus, mas que contagiou o mundo com uma dose indispensável de ciência e humanidade.

Referências

* Altman, L. K. (1991, December 10). The Doctor's World; A Kiss Is Still a Kiss, Except in the Age of AIDS. The New York Times. Retrieved from https://www.nytimes.com/1991/12/10/health/the-doctor-s-world-a-kiss-is-still-a-kiss-except-in-the-age-of-aids.html

* Sontag, S. (1989). AIDS and Its Metaphors. Farrar, Straus and Giroux.

* UNAIDS. (2021). Confronting inequalities: Lessons for pandemic responses from 40 years of AIDS. Joint United Nations Programme on HIV/AIDS.

* Valdiserra, R. O. (1994). The psychosocial consequences of AIDS: A review of the literature. AIDS Education and Prevention, 6(2), 159-171.




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