Agora, o que esse cenário de alta performance e pressão tem a ver com um educador brasileiro, nascido em Recife, que falava em "pedagogia do oprimido" e em alfabetizar adultos usando a realidade deles?
À primeira vista, nada. No entanto, as ideias de Paulo Freire não apenas chegaram ao Leste Asiático, como também se tornaram uma ferramenta vital de resistência, democracia e humanização, exatamente por causa da rigidez desses sistemas. Esta é a surpreendente jornada de como o pensamento freireano encontrou um lar em alguns dos lugares mais competitivos do planeta.
O "Vilão" da Educação Bancária
Para entender por que Freire se tornou relevante na Ásia, precisamos lembrar sua ideia mais famosa: a crítica à "educação bancária".Freire dizia que o método tradicional de ensino trata o aluno como um cofre vazio, onde o professor "deposita" conhecimento (fatos, datas, fórmulas). O aluno simplesmente memoriza e repete. Não há diálogo, não há questionamento, não há conexão com a vida real.
Para Freire, o oposto disso é a "educação libertadora". Nela, professor e aluno aprendem juntos, numa conversa (diálogo) que usa os problemas reais da comunidade para "despertar a consciência" (o que ele chamou de conscientização). O objetivo não é decorar, mas entender o mundo para poder transformá-lo.
Agora, pense novamente nos sistemas educacionais do Japão, Coreia do Sul e Taiwan. Durante décadas, seu foco principal foi a memorização em massa para passar em testes padronizados. Eles são, talvez, os maiores exemplos de "educação bancária" bem-sucedida do mundo.
O sucesso econômico veio, mas cobrou um preço: níveis altíssimos de estresse estudantil, falta de pensamento criativo e, historicamente, uma população que não era ensinada a questionar a autoridade. Foi nesse vácuo que Freire entrou.
Coreia do Sul: Freire como Ferramenta de Democracia
Na Coreia do Sul, a influência de Freire é profunda e ligada diretamente à luta contra a ditadura militar (que durou até o final dos anos 1980). Durante esse período, o sistema educacional era usado para promover a ideologia do regime e desencorajar o pensamento crítico.Foi então que ativistas estudantis, intelectuais e líderes de movimentos sociais descobriram a Pedagogia do Oprimido. As ideias de Freire sobre conscientização e sobre dar voz aos silenciados foram uma revelação.
O livro se tornou um manual para o Minjung (movimento popular), inspirando grupos de estudo clandestinos e universidades populares. Freire ofereceu a linguagem e o método para que os sul-coreanos questionassem sua própria opressão, não apenas econômica, mas política. Ele ajudou a formar a geração que, eventualmente, conquistou a democracia no país.
Taiwan: A Busca pela Identidade
A história de Taiwan é semelhante. Por décadas (um período conhecido como "Terror Branco" sob o regime do Kuomintang), o sistema educacional impunha uma identidade chinesa padronizada, suprimindo as línguas e culturas locais. A educação era puramente "bancária" e ideológica.Quando o país começou seu lento processo de democratização nos anos 1980 e 1990, os educadores reformistas de Taiwan olharam para o exterior em busca de alternativas. Eles encontraram em Paulo Freire uma forma de criar uma educação que fosse taiwanesa, baseada na realidade dos alunos.
As práticas freireanas foram usadas para desenvolver programas de "educação comunitária", ajudando as pessoas a redescobrir sua história local e a construir uma nova identidade democrática, livre da doutrinação do passado.
Japão: A Resistência Silenciosa
No Japão, a influência de Freire foi menos explosiva, mas igualmente importante. Sendo uma democracia estabelecida pós-guerra, o Japão não tinha uma ditadura para derrubar. O "opressor", aqui, era o próprio sistema educacional: o "inferno dos exames" (shiken jigoku).No Japão, Freire foi adotado por grupos de educação de adultos e ativistas que trabalhavam com minorias historicamente marginalizadas, como os Burakumin (descendentes de uma antiga casta) e os residentes coreanos (Zainichi).
Para esses grupos, a educação "bancária" japonesa não apenas os entediava, mas os tornava invisíveis. O método de Freire, focado no diálogo e na realidade vivida, foi usado para criar espaços onde essas pessoas pudessem discutir suas vidas, entender a discriminação que sofriam e fortalecer suas comunidades, longe da pressão conformista da escola regular.
O Legado Asiático de Freire
Hoje, enquanto Japão, Coreia do Sul e Taiwan continuam a debater reformas para aliviar a pressão sobre seus estudantes e fomentar a criatividade, as ideias de Paulo Freire permanecem surpreendentemente relevantes.Elas inspiram escolas alternativas, projetos de arte comunitária e professores universitários que tentam romper o ciclo da memorização.
A jornada de Freire pelo Leste Asiático nos mostra que a crítica à "educação bancária" não é um debate apenas da esquerda latino-americana. A necessidade de uma educação que liberte, que humanize e que nos ensine a pensar por nós mesmos é universal. O educador de Recife provou que um diálogo iniciado no Brasil podia, de fato, ajudar a transformar o mundo – mesmo do outro lado dele.
Referências
Freire, P. (2018). Pedagogia do oprimido (65ª ed.). Paz & Terra.
Oh, J.-H., Pedroni, T. C., & Park, H. S. (2018). Freirean-inspired practices in South Korea, Taiwan, and Japan. Em T. G. Groenewald (Ed.), The Wiley handbook of Freire (pp. 141–158). John Wiley & Sons. https://doi.org/10.1002/9781119236788.ch9
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